Deus
Podeis não temer a Deus, mas é imprudência não acautelar-se ante alguns de seus fiéis

Por Eduardo Papa*
Há alguns anos atrás, após uma série de ataques a terreiros de umbanda no Rio, a escola em que eu lecionava promoveu um debate sobre intolerância religiosa, medida pertinente, uma vez que grande parte de nosso alunado era afrodescendente. O evento atraiu grande interesse e lotou o auditório. Na mesa havia representantes de todas as religiões significativas em nossa sociedade, todos oradores experientes e muito bem-preparados, mas a exposição inicial dos convidados foi um tanto monótona, com uma repetição enfadonha do quanto o Deus que cultuam é generoso e inclusivo, e de como a seita que professam pratica a tolerância. Aberta a palavra ao público fui o primeiro a falar, disposto a advogar pelo diabo no meio de tanta santidade, após um protocolar intróito saudando os visitantes, fiz a pergunta encomendada pelo caprioto: afinal, nesse mundo de seus deuses, qual o lugar destinado a nós incréus, gente como eu que encara como mito o que para vocês é dogma?
Essa é a questão crucial: o pensamento humano atual pode ser dividido em duas vertentes, uma concepção que vamos chamar de materialista, que busca explicar os fenômenos naturais e sociais com base no método científico, e o pensamento metafísico, que admite a existência de uma dimensão além do mundo físico, com divindades que determinam ou influenciam o que ocorre no mundo real. A lei brasileira é sábia ao garantir ampla liberdade religiosa e exigir do Estado um caráter absolutamente laico, de modo a poder empregar na busca do bem comum as melhores práticas recomendadas pela ciência, livre da influência de fundamentalismos religiosos, que podem conduzir a todo tipo de obscurantismo.
Veremos agora como Deus, ou a alegoria dele na cabeça das pessoas, influenciou a história humana, em especial aqui em nosso cadinho do mundo. Como as religiões dos povos originários e de matriz africana são minoritárias e sem o potencial ou intenção manifesta de imposição ao resto da sociedade, e as religiões de origem oriental, como o islamismo e o budismo não possuem representação expressiva em nossa formação social, vamos nos concentrar no cristianismo.
Tendo origem na então remota província da Judéia, o cristianismo espalhou-se em uma velocidade vertiginosa em todo o mundo romano, até tornar-se a religião oficial do Império. Seu sucesso, assim como o do islamismo, significou um avanço civilizacional para a humanidade. As grandes religiões monoteístas trouxeram para o mundo terreno a ação de um legislador todo poderoso, cuja lei deve ser seguida por todos. Mesmo o mais poderoso dos governantes não pode mais dispor dos bens, das esposas, ou da vida de seus súditos, sem infringir uma lei maior, que iguala todos os homens ante o Senhor de todos os senhores. A cruz torna-se o escudo do homem comum contra o arbítrio da espada, e a fé cristã foi de fato uma grande renovação para o povo do mediterrâneo e depois para o de toda a Europa. E sua força foi gerada no caráter revolucionária da pregação do nazareno.
A leitura da bíblia nos traz uma conclusão evidente, há um abismo entre o antigo e o novo testamento, marcado por uma abordagem completamente diferente sobre a divindade. O Deus dos hebreus oferece o rigor da lei divina e a brutalidade nas punições, já o Cristo traz o perdão e a comunhão, que incutiram a esperança de um novo mundo para imensas massas por séculos. Jesus era um judeu zelote, que não aceitava a opressão exercida pelo poder romano e chancelado pela elite sacerdotal, o seu Reino de Deus era um projeto real para sociedade de seu tempo, em conseqüência disso morreu na cruz, pena destinada por Roma aos inimigos do Estado. Sua pregação de um Deus universal para toda a humanidade, que conquista pelo amor e defende a paz, um Deus que propõe compartilhar o pão, um Deus pela piedade e o perdão, marca uma ruptura radical com o velho testamento (como comprova a situação dos palestinos em nossos dias, sujeitos à dominação de um povo que se considera eleito por seu Deus). O Cristo de fato inaugurou uma nova era para a humanidade, como consagra nosso calendário.
O cristianismo dominou o Império e, ao longo dos séculos, vivenciou uma progressiva promiscuidade entre o poder temporal e o religioso, e assim a Igreja de Pedro e Paulo foi sendo desfigurada. A fé cristã foi corrompida ao ponto de justificar a escravidão de outros povos, seus líderes transformaram-se em estadistas envolvidos em problemas mundanos, usando sem pudor a força da religião para seu enfrentamento. Uma enorme revolta dos cristãos, em múltiplas heresias, ensanguentou a Europa no séc. XVI e gerou a reforma da Igreja, com o surgimento de novas seitas cristãs e uma nova ética religiosa, mais adequada ao novo homem que surgia no continente - o burguês.
Porém, as caravelas que ancoraram no litoral do Pau Brasil não vieram com reforma nenhuma, o que baixou por aqui foi mesmo a Inquisição e os jesuítas com seu projeto de um estado teocrático. Em nossa terra o cristianismo renegou completamente sua origem revolucionária, ao contrário, a Igreja no Brasil foi instrumento do extermínio de povos inteiros, dedicou-se a destruir, apagar e demonizar a cultura dos povos dominados e defender com todas as forças o poder dos invasores, bons cristãos é claro (talvez isso remeta o leitor a fazer correlações com o nosso tempo), que impuseram sua fé a ferro e fogo. Os ventos da reforma protestante chegaram muito tardia e timidamente ao Brasil, e as denominações tradicionais do protestantismo nunca tiveram expressão em nossa sociedade. A Igreja Católica reinou soberana entre os cristãos brasileiros até a explosão das seitas neopentecostais, na segunda metade do século passado.
Em fina ironia do destino, o prestígio da Igreja católica passou a ser ameaçado, perdendo fiéis para as novas igrejas em ritmo acelerado, principalmente entre os mais pobres, justamente quando ganha força dentro dela a Teologia da Libertação, e parte dos católicos começa a buscar uma releitura do cristianismo original para nossos tempos. Difícil de entender? Não, é simples. Parceiros de sempre da Igreja Católica mudaram de lado, as novas igrejas disputam o fervor e a crença dos pobres com o apoio do latifúndio, de amplos setores do capital e de segmentos do aparelho do Estado (notadamente nas forças de repressão), graças a uma interpretação do cristianismo que cai como uma luva para os segmentos mais reacionários da sociedade.
Ora o que há de comum entre essas novas denominações do cristianismo? A clara preferência pelo velho testamento. Esses novos pastores deixam o Cristo de lado, identificam-se sim com os reis de Israel (ao que parece não só com os antigos), buscando para si uma imagem de novos profetas. Com objetivos ambiciosos, o apoio de poderosos aliados e um claro projeto de poder político, os bispos das grandes igrejas constroem impérios financeiros, dominam segmentos cada vez maiores da mídia e elegem bancadas numerosas nas casas legislativas. Esses ‘novos profetas’ promovem uma hábil e sutil adaptação da doutrina cristã para os limites dos princípios do neoliberalismo, incorporando valores caros ao mercado, como a meritocracia e outros ainda mais cruéis, que fariam o Cristo ficar arrepiado, mas que galvanizam o apoio dos segmentos mais retrógrados da sociedade. A aberração chegou ao auge com a ‘teologia da prosperidade’ e a bizarra figura ‘crente ostentação’ e a mais perniciosa ainda ‘teologia do domínio’, que flerta com o fascismo abertamente. Não tenho dúvidas de que se o golpe militar tivesse prosperado essas igrejas estariam apoiando a repressão e a tortura.Impulsionadas pelas redes sociais e com sólido trabalho de arregimentação entre os pobres, prestam-se a espalhar a desinformação política, todo tipo de preconceitos, e o negacionismo científico. Sua influência só faz crescer nos mais diversos setores da sociedade civil, inclusive no crime organizado.
A inicial, e de certa forma natural, identificação dessas novas seitas com as milícias transbordou para uma relação sólida com o narcotráfico, com casos de suspeita de lavagem de dinheiro, ocultação e transporte de drogas, recrutamento de quadros para os comandos em presídios, etc. Obscura promiscuidade criou aqui no Rio um despautério com o tamanho do Complexo de Israel, comunidades com milhares de habitantes dominadas por traficantes terrivelmente evangélicos, que proíbem outras religiões (até mesmo a Igreja Católica enfrenta restrições ao funcionamento), em que pastores abençoam as armas dos criminosos antes dos conflitos, e os traficantes promovem uma interpretação muito peculiar do cristianismo. O risco que vivemos é grande! Nesses novos tempos em que totalitarismos renascem com redobrada força, de braços dados com o fundamentalismo religioso em seus múltiplos matizes, essa nova e enviesada forma de interpretação do cristianismo nada de braçada e, se tudo der errado, podemos assistir a criação do ‘Evangelistão do Pó’.
Que Deus nos livre e guarde!
Eduardo Papa
Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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