A necessidade urgente de combater a ideação suicida entre pessoas LGBTQIA+
Amara Moira, coordenadora de Educação do Museu da Diversidade Sexual, destaca os desafios emocionais enfrentados pela comunidade e a importância de políticas inclusivas e do acesso à informação
Este mês é conhecido como Setembro Amarelo, quando se abriga campanhas de conscientização sobre a saúde mental. Em um cenário onde a comunidade LGBTQIA+ demanda atenção urgente, o jornal Pimenta Rosa conversou com Amara Moira, coordenadora de Educação, Exposições e Programação Cultural do Museu da Diversidade Sexual. Dados alarmantes da revista Pediatrics indicam que 62,5% das pessoas LGBTQIA+ já consideraram o suicídio, fruto de ambientes hostis que elevam em 20% o risco de suicídio. Moira aponta que a auto-organização e a construção de coletivos são fundamentais para criar espaços seguros. 'Precisamos fomentar a articulação com outros movimentos sociais, pois nossas identidades não são únicas; somos múltiplos em raça, classe e gênero', afirma. Dentre as iniciativas de sucesso no combate à ideação suicida, destaca a campanha 'Preciso dizer que te amo', que gerou um curta-metragem sobre a resistência de homens trans. Além disso, decisões do STF, como a criminalização da LGBTfobia, têm contribuído para a promoção de uma sociedade mais inclusiva. Moira acredita que o acesso à informação e à educação é crucial para prevenir o sofrimento emocional. 'A mudança deve vir de uma transformação radical da sociedade. Não podemos focar apenas no indivíduo, mas sim em criar um ambiente que acolha e valorize a diversidade', argumenta. Confira a seguir a íntegra da entrevista exclusiva de Amara Moira, que aborda questões fundamentais sobre a realidade enfrentada pela população LGBTQIA+, as políticas necessárias para garantir segurança e apoio, além de iniciativas bem-sucedidas que buscam transformar essa triste estatística.
Estudos da revista Pediatrics mostram que 62,5% das pessoas LGBTQIA+ já pensaram em suicídio, com chances seis vezes maiores de tirarem a própria vida em comparação com pessoas heterossexuais. Qual é a sua avaliação sobre esses números alarmantes? E como a sociedade pode entender melhor as causas desse sofrimento emocional na população LGBTQIA+?
A taxa elevada de ideação suicida entre pessoas LGBTQIA+ revela que, ainda hoje, vivemos em um mundo do qual não nos sentimos parte; um mundo que insiste em nos discriminar, segregar e naturalizar as violências que cometem contra nós. Essas violências costumam começar dentro de casa, pois agimos como se fosse natural um pai ou uma mãe sentir aversão, ou até mesmo ódio, de um filho(a) que não se encaixa nos padrões hegemônicos de gênero e sexualidade. Ainda hoje, a frase "prefiro filho morto a filho gay" é perfeitamente compreensível; não soa como um completo absurdo e não precisa de nenhuma explicação. Teremos avançado quando essa frase parecer tão surreal quanto "prefiro filho morto a filho médico, professor, ruivo" ou qualquer que seja o adjetivo. E a família é apenas o primeiro dos problemas. Depois, ainda temos a vizinhança, a escola, a mídia e, quando essa criança cresce, o mercado de trabalho.
Em ambientes hostis, o risco de suicídio para pessoas LGBTQIA+ aumenta em 20%. Como a discriminação, a violência e a exclusão social potencializam esse risco? Que tipos de ações e políticas podem ser implementadas para reduzir esses fatores de risco em ambientes sociais e educacionais?
Hoje em dia, ainda é preciso ser forte; é preciso ter coragem para ser uma pessoa LGBTQIA+. O ideal é, um dia, que nada disso seja mais necessário, pois essa força e coragem extremas nos corroem por dentro e vão sugando a nossa vontade de viver. A violência não é cometida apenas de forma escancarada e direta, como em casos de agressão física ou assassinato. Crescemos ouvindo que "bicha" e "sapatão" são xingamentos, formas de diminuir alguém, coisas que ninguém quer ser. Familiares acham normal fazer chantagem emocional para que abramos mão de ser quem somos ('papai do céu vai ficar triste", "seu vô vai morrer de desgosto", "quando você se assumiu, você deu uma punhalada no meu coração' etc.). Muitos de nós ainda tivemos que passar por terapias de conversão. Aqui no Museu da Diversidade Sexual, temos realizado inúmeras ações com escolas para mostrar que: 1) a LGBTfobia acompanha todo o processo de consolidação do Brasil, desde os primórdios da colonização, e 2) o resgate da memória é uma das formas mais eficazes de transformarmos as narrativas que construíram a nosso respeito. Através desse resgate, vamos descobrindo pessoas LGBTQIA+ que foram e são motivo de orgulho para a comunidade, mas também de que maneira o ódio contra nós foi se disseminando. Quando percebemos que esse ódio tem história, que ele não é algo natural (algo que nasce conosco), aí começa a transformação de fato.
Quais políticas inclusivas a senhora considera fundamentais para criar espaços seguros e promover redes de apoio para a comunidade LGBTQIA+?
A auto-organização é importante, pois somente quando nos juntamos percebemos que não estamos sozinhos e, mais do que isso, que não somos poucos. Fomentar coletivos LGBTQIA+ é imprescindível. Estamos vendo isso acontecer cada vez mais em cidades, escolas, universidades e mesmo nas grandes empresas. Mas é importante que não nos acostumemos com a segregação, pois o objetivo deve ser sempre a vida no coletivo, a construção de uma nova ideia de comunidade. Para isso, é essencial a articulação com outros movimentos sociais, até porque nunca somos apenas LGBTQIA+, né? Temos raça, classe social, gênero, etc. Espero que um dia esses grupos focais e articulações não sejam mais necessários, pois teremos aprendido a conviver com quem é diferente sem nos sentirmos ameaçados... a raiz do preconceito está nisso: acreditar que a mera existência do diferente pode fazer meu mundo ruir.
Há exemplos de iniciativas bem-sucedidas que a senhora poderia destacar que ajudaram a reduzir o índice de suicídio nessa população?
Lembro de uma iniciativa muito bonita do Ariel Nobre, a campanha "Preciso dizer que te amo", de sensibilização contra o suicídio de homens trans. Ela resultou em um belo curta-metragem sobre as estratégias de resistência de pessoas trans para sobreviver. É importante mencionar que algumas decisões do STF têm colaborado ativamente para que enfrentemos os discursos de ódio e criemos uma sociedade onde pessoas LGBTQIA+ fazem sentido, como, por exemplo, a criminalização da LGBTfobia (Lei de Racismo, 7.716/89) e a desburocratização da retificação de documentos civis para pessoas trans (Provimento CNJ 73/2018).
A senhora acredita que o acesso à informação e à educação sobre diversidade sexual pode prevenir o sofrimento emocional e o suicídio?
As soluções não podem ser focadas no indivíduo, porque o que gera a ideação suicida é a inserção em uma sociedade que nos rejeita, nos despreza e que, muitas vezes, acredita que não deveríamos sequer existir. A vergonha e o autoódio que introjetamos, o medo de ocupar o espaço público, de não ter emprego e dinheiro, de não poder viver o amor, esses são alguns dos sentimentos que levam uma pessoa à ideação suicida e, para que eles deixem de existir, é preciso uma transformação radical da sociedade. O acesso à informação e à educação é crucial, mas, em tempos de desinformação e de pânicos morais em cima da pauta LGBTQIA+, de que informação e educação estaremos falando?
Considerando a relevância deste mês para a conscientização sobre o tema, como o Museu da Diversidade Sexual tem se posicionado em relação à prevenção ao suicídio entre pessoas LGBTQIA+?
O trabalho não é tão direto, na maioria dos casos. Temos uma vez por mês uma roda aberta para discutir questões relacionadas à saúde mental, mas acredito que outras ações sejam até mais efetivas nesse sentido. Por exemplo, nosso Rolezinho LGBTQIA+, um passeio que fazemos pelo centro de São Paulo para promover o resgate de memórias da comunidade, atrelando-as à cartografia urbana. Caminhamos em grupo pelo centro, conhecendo a história de figuras e fatos marcantes, sentindo orgulho de quem veio antes e orgulho de estarmos unidos disputando a memória da cidade. Os encontros do Clube do Livro discutem obras de autoria e temática LGBTQIA+ incríveis. Os filmes que trazemos no nosso CineClube e as visitas mediadas em nossas exposições também contribuem. O combate à ideação suicida pode ser feito de maneira mais direta e personalizada, por profissionais de saúde mental, mas também pode ser construído de maneira mais indireta, através de ações que deixem a sociedade fascinada com a nossa existência, ansiosa para saber mais a nosso respeito e para aprender com a gente. Combate à ideação suicida envolve, antes de mais nada, tornar a vida mais leve.
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