Flores
Este é o título do artigo de Cristina Nunes de Sant´Anna, jornalista, doutora em Ciências Sociais, pesquisadora associada do Lacon e do Harpia, ambos da UERJ, que nos leva a reflexão do papel da escola ‘como moldadora de uma sexualidade padrão’, nos apresentando o pensamento da professora Guacira Lopes, doutora em educação e professora titular aposentada do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e de Raul Pompéia, escritor brasileiro pertencente ao movimento realista e naturalista, que em sua trajetória de vida, foi jornalista, contista, cronista, romancista e orador. Sua obra mais relevante e uma das mais importantes do realismo é O Ateneu, publicada em 1888.
Em seu artigo Pedagogia da Sexualidade, a professora Guacira Lopes Louro trata da escola como moldadora de uma sexualidade padrão, de corpos padrão que seriam domados por critérios estéticos, sexuais, higiênicos e morais. Marcas que precisariam ser assimiladas de forma que nossa sexualidade e nossos corpos fossem modelados por discursos que reflitam uma identidade normativa. Discursos que regulem saberes e produzam pseudoverdades, uma vez que a sexualidade seria algo dado pela natureza e não pelas nossas escolhas com quem nos relacionar e como pretendemos viver, sentir e usufruir desta sexualidade em nossos corpos. O texto, publicado no livro de Guacira, O Corpo Educado, em 2000, aborda o papel da escola como uma das principais demarcadoras de uma norma ‘que estabelece, historicamente, o homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão (...) e, no caso da mulher, ela seria o segundo sex’ e gays e lésbicas descritos como desviantes da norma heterossexual’.
A heterossexualidade encerraria o campo semântico da normalidade, da universalidade e da hegemonia dos corpos, sujeitados a uma suposta naturalidade que vigia, aponta e qualifica corpos não-heteros como antinaturais. Lopes Louro aponta práticas da escola que disciplinam os corpos das meninas e dos meninos para deixá-los formatados no que ela chama de pedagogia da sexualidade e no que eu chamaria de escolástica da sexualidade. Expressão definida, grosso modo, como guardiã de valores espirituais, morais e cristãos. A prática filosófica era preconizada pela Igreja durante a Idade Média. Período em que o sexo era considerado pecado original porque Adão e Eva foram expulsos do Paraíso pela ousadia de provar da maçã: fruto proibido, fruto da copulação e, por que não dizer, fruto que dava direito ao prazer.
Voltemos à Guacira Louro. Nas escolas, os corpos ‘são ensinados, disciplinados, medidos, avaliados, examinados, aprovados (ou não), categorizados, coagidos, consentidos’, escreve ela. Pedagogias voltadas a uma dita escola padrão, que inibe qualquer indicativo, qualquer marca que evidencie corpos e sexualidades diferentes. A escolarização dos corpos molda-os, moral e religiosamente (formas de poder) em uma forma tão justa e tão apertada, com o intuito de impedir que indivíduos exerçam sua sexualidade plena. É no espaço cada vez mais escolástico da escola onde se incentiva o uso de uma carapaça heterossexual, tal qual um uniforme, que afaste, preventivamente, modos de vida e valores diversos.
Em meio a seu texto, Guacira cita a experiência de um professor de ensino médio que recebera um buquê de flores de um aluno. Segundo o professor, as flores representavam uma forma de agradecimento deste aluno, por ter passado nos exames. Ainda de acordo com o relato do professor, alunos e outros docentes passaram a se referir ao episódio com piadas homossexuais até o aluno chegar a vias de fato com um colega, para se defender. O caso chegou à diretoria e o professor que ganhou as flores foi chamado à sala do diretor. Não pela briga, contudo. Mas pela troca de flores entre dois homens, considerada, do ponto de vista institucional do universo escolar, muita mais ameaçadora do que a violência física entre os alunos durante a briga.
Um buquê de flores trocado entre dois rapazotes, em um ambiente escolar, foi também causa de assombro:
‘O meu bom amigo, exagerado em mostrar-se melhor e sempre receoso de importunar-me com uma manifestação mais viva, inventava cada dia uma surpresa e agrado. (...) Um dia, abrindo pela manhã a estante numerada do salão de estudo, achei a imprudência de um ramalhete (...) Acariciei as flores, muito agradecido, e escondi-as antes que vissem’.
A cena fictícia se dá entre o bibliotecário Bento Alves e Sergio, ambos alunos de um internato chamado O Ateneu, título do livro do escritor, jornalista, abolicionista e republicano Raul Pompéia (1863-1895). Publicada em 1888, a obra causou escândalo e talvez tenha também servido como pano de fundo para o suicídio do autor, com um tiro no coração, na véspera de Natal.
Pompéia estudou igualmente num colégio interno famoso e muitos, à época, consideraram o livro autobiográfico (o que o escritor sempre negou). Um deles foi Olavo Bilac, que, num artigo de jornal, teria aludido à suposta homossexualidade de Raul Pompéia, em resposta a um discurso violento deste último: Florianista doente, Pompéia fez um duro pronunciamento no funeral de Floriano Peixoto. Prudente de Moraes, que substituíra Floriano na presidência sentiu-se ofendido e, por isto, teria demitido Pompéia da direção da Biblioteca Nacional. Os artigos de Bilac e Luiz Murat (este intitulado O Louco do Cemitério), além da demissão na Biblioteca Nacional, podem ter contribuído para o suicídio de Raul Pompéia.
Literatura é ficção. Ficção eivada de realidade. Num romance do século XIX e num artigo do início do século XXI, somos confrontados com a inflexível escolarização que doma corpos e com o que supostos ou reais desejos distintos da norma heterossexual podem causar. Pela troca de flores entre dois homens, um diretor de uma escola secundária chama a atenção de um professor. Numa escola fictícia, uma igual troca de flores entre dois alunos precisa ser escondida. E por quê?? Porque Aristarco, o apavorante e vetusto diretor do internato, era também implacável em domar corpos por intermédio da escolarização. Tanto que, ao descobrir cartas de amor trocadas entre dois outros alunos, o personagem vocifera sobre deformada fisionomia que agrava a natureza, num acesso de cólera contra o desvio da norma heterossexual:
‘Esquecem pais e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilância inelutável de Deus!... Na face estanhada não lhes pegou o beijo santo das mães... Caiu-lhes a vergonha como um esmalte postiço... Deformada a fisionomia, abatida a dignidade, agravam ainda a natureza; esquecem as leis sagradas do respeito à individualidade humana... E encontram colegas assaz perversos, que os favorecem, calando a reprovação, furtando-se a encaminhar a vingança da moralidade e a obra restauradora da justiça!’ (O Ateneu).
‘Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu (...) Eu tinha onze anos’. Assim está grafado logo na primeira página de O Ateneu. Seu protagonista, Sergio, contará sobre assunto dos mais atuais, os ateneus que, para tentar modernizar sua nomenclatura, passaram a se denominar também escolas. O menino nos fará conhecer a rotina ameaçadora da instituição, a forma-padrão a que ele e seus colegas de internato eram submetidos, a troca de buquês de flores entre meninos e de relações amorosas entre os estudantes.
Sim, Sergio encontrou o mundo. Raul Pompéia também. Assim como encontraram aqueles professor e aluno daquela escola secundária. O pior mundo possível. Um mundo em que a troca de buquês de flores como formas de carinho, afeto e amor (dos mais diversos tipos) seriam formas de perversão.
Morto aos 32 anos, Raul Pompéia deixou um curtíssimo bilhete, endereçado ao Jornal A Notícia: ‘Ao jornal A Notícia e ao Brasil, declaro que sou homem de honra.’
Referências:
O Corpo Educado, de Guacira Lopes Lobo
O Ateneu, de Raul Pompéia
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