O BRASIL VAI DEIXAR DE SER UMA REPÚBLICA DE BANANAS?
- Eduardo Papa
- há 1 dia
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Por Eduardo Papa*
Golpes militares não são novidade no Brasil, mas sim uma tradição arraigada em nossas forças armadas. Deodoro da Fonseca abriu a fila com a quartelada que derrubou o Império, pouco tempo depois, incomodado com esse negócio de votações no congresso e essas coisas da democracia, deu um autogolpe se tornando ditador. Aí deu ruim, pois o Almirante Saldanha da Gama não aceitou e quis mostrar que a marinha também sabe dar golpe, eclodiu a Revolta da Armada, afinal como o exército ia ficar com todo o butim? Deodoro encarregou seu vice Floriano Peixoto de dobrar a marujada, este, aproveitando que estava no comando, deu o seu próprio golpe, derrubou o chefe e assumiu o poder. Foi demais para o almirantado, Saldanha da Gama levantou a marinha em uma segunda revolta para ir à forra, perdeu mais uma vez e Floriano virou o Marechal de Ferro.
Custou para a oligarquia rural botar ordem nessa fuzarca e acabar com a República da Espada. Mas, ainda que os “coronéis” tenham apascentado generais e almirantes, os tenentes herdaram a sua sede pelo poder e iniciaram uma série de golpes: 1922, no Rio de Janeiro, 1924, em Manaus e São Paulo (de onde partiu a Coluna Prestes 1925/27), até finalmente conseguirem sucesso em 1930 (que inaugura nossa tradição de chamar golpes militares bem sucedidos de revolução). Em 1935, os comunistas provam que golpe militar não tem ideologia e promoveram um para chamar de seu. Em 1937, Getúlio Vargas lidera sua segunda quartelada e assume poderes ditatoriais, apenas para ser deposto por um novo golpe militar, em 1945.
A derrubada de Getúlio marcou o início da influência do Tio Sam nas forças armadas brasileiras, e uma enxurrada de dólares passou a regar nossos golpes militares. Assim foi na escalada golpista da República do Galeão, frustrada pelo suicídio de Vargas em 1954, bem como em 1955, na Revolta de Aragarças contra a posse de Juscelino e, em 1961, quando tentaram impedir que Jango assumisse a presidência. Finalmente logrando êxito, em 1964, os generais implantaram uma ditadura sanguinária de 21 anos, que promoveu um violento expurgo de militares não alinhados ao novo regime e instituiu um rígido sistema de doutrinação ideológica nas academias militares, transformando nossas forças armadas como que em tropas de nativos do exército colonial estadunidense.
A ditadura caiu de podre. Os generais perderam arrogância e passaram o fim de seu governo de joelhos, implorando empréstimos ao FMI. Os mesmos que manifestavam indignação com a inflação anual de 90% no governo Goulart, entregaram uma economia destruída por um índice acima de 1.300% ao ano e sentiram na pele como os EUA tratam seus lacaios depois de perderem o valor, como bagaço de laranja a ser descartado, tal e qual o Zelensky e sua turma hoje em dia. Apesar de saírem com o filme queimado, preservaram as “mamatas” acumuladas ao longo dos anos e impuseram uma anistia aos que cometeram crimes contra a humanidade. A semente do mal foi preservada e o cenário para o próximo golpe começou a ser montado pelo lobby, capitaneado pelo Gal. Leônidas Pires, para garantir o artigo 142 na nova constituição.
Durante os governos liberais de Collor e FHC, os militares ficaram de bico seco assistindo às capacidades bélicas do país serem sucateadas, e muitos integrantes das forças especiais e dos aparelhos de segurança partiram para atividades privadas. Alguns foram para a África para servir como mercenários para forças do apartheid, outros optaram pelo crime organizado (grupos de extermínio, jogo do bicho, etc) ou para a área de “segurança privada”, hoje popularmente conhecida como milícia. Quando, nos governos do PT, o setor público voltou a investir, contemplando também aumento nos gastos militares, os nossos guerreiros voltam a ganhar musculatura. Ansioso por projeção internacional, Lula concorda em enviar uma missão militar ao Haiti, os generais vibraram ganhando uma grana para fazer o papel de jagunçada dos EUA e recuperaram a arrogância perdida. Quando Dilma criou a Comissão da Verdade e começou a revolver o entulho macabro da ditadura, lançando a luz sobre o passado escabroso de torturadores e assassinos brutais, que desfrutam de gordas aposentadorias em total impunidade, o golpe começou a ser urdido.
Os Clubes Militares tiraram do baú os estandartes da tradição, família e propriedade. Em uma cruzada pela moralidade, o panteão dos ideólogos da pátria ganhou um novo luminar (o tal filósofo que fugiu da escola na 5ª série), que incorporou a “crítica ao politicamente correto” ao ideário dos patriotas, o que atraiu como um imã racistas, misóginos, homofóbicos, fascistas e outros tantos saudosos dos “velhos tempos”. Impulsionados pelos algoritmos das redes sociais, uma série de influenciadores digitais oportunistas surfam na onda conservadora, aglutinando uma massa crítica que reunia as condições perfeitas para sustentar o novo golpe, que já em 2013 demonstrou seu potencial de mobilização nas ruas, para depois surpreender o país com sua força e disposição na campanha pelo impeachment da Dilma.
Quando o Departamento de Estado dos EUA aplicou o lawfare para tirar Lula do processo eleitoral de 2018, a pressão que o Gal. Vilas Boas botou em cima do STF para negar o Habeas Corpus que o recolocaria no páreo, não foi a contribuição de um mero coadjuvante no processo. O mesmo general foi o responsável pelo lançamento da campanha de Bolsonaro dentro da Academia Militar das Agulhas Negras, em 2016, campanha abraçada com entusiasmo pela “família militar”. Uma máquina de desinformação com milhões de robôs disseminando fake news, pastores de igrejas poderosas fazendo campanha em suas congregações, o latifúndio acionando seus currais eleitorais, empresários coagindo trabalhadores, milícias paramilitares tocando o terror na sua área de influência, garantiram a vitória do candidato dos generais.
Uma vez instalado o governo Bolsonaro, inicia-se a preparação para o assalto ao poder. Como uma nuvem de gafanhotos, milhares de militares aboletam-se na administração federal sem qualquer cerimônia. Em nenhum governo anterior, tantos militares ocuparam cargos comissionados na administração civil e chegaram com cotovelos pontudos e dentes afiados, promovendo uma perseguição a esquerdistas e funcionários de carreira que criassem qualquer embaraço a seus propósitos. Quando, em plena pandemia da Covid 19, o general Pazzuelo (o gênio da logística da Vila Militar do Rio de Janeiro) assumiu o Ministério da Saúde, esperava-se que fosse agregar técnicos da área da saúde em sua equipe, entretanto, o que se viu foi a nomeação de kids pretos para os cargos chave. A inundação verde oliva em todos os ministérios, além de potencialmente facilitar a instalação de um futuro governo golpista, infiltrou na máquina administrativa elementos ligados ao esquema, que podiam ser usados em atividades obscuras e ilegais, assim como o coronel que operava o desvio de recursos do cartão corporativo, ou o Almirante de Esquadra que fazia a vez de mula no contrabando de jóias da quadrilha.
O golpe ia de vento em popa, os generais do planalto pareciam ter tudo sob controle, engraxaram os políticos com os bilhões do orçamento secreto, cuja perspectiva de continuidade garantiria o apoio e forneceria as leis necessárias ao novo estado autoritário. Uma vitória eleitoral, com o congresso no bolso, quebraria qualquer resistência do judiciário, do mesmo modo que as milícias fizeram no Rio, com sucessivos governadores indicando desembargadores de total confiança das organizações criminosas. Usaram todo tipo de expediente para reeleger Bolsonaro, compra de voto, coação de eleitor, utilização da máquina pública, campanha de desinformação, etc. Tinham o apoio do agro, da mídia, dos bancos, das milícias, dos CACs, dos evangélicos e do diabo a quatro. Tinham a faca e o queijo na mão, mas perderam, e nem dá para chorar que foi de pouco, pois ganhar roubado é feio, mas perder roubando é humilhante.
A derrota lançou a cizânia no partido militar, parte dos comandantes passou a ponderar, com apreensão, a manifesta desautorização de Joe Biden ao golpe, já aos mais diretamente envolvidos na trama, antevendo o destino a que o fracasso os condenaria, restou dobrar a aposta e partir para organizar bloqueios nas estradas e acampamentos na porta dos quartéis. O isolamento internacional e a reação de verdadeiro nojo expresso pela sociedade brasileira ao golpismo fizeram com que a vitória lhes escorresse pelos dedos, ainda tentaram a última e desesperada cartada no dia 8 de janeiro. Porém, o golpe foi sepultado quando o Comandante Militar do leste fez um discurso firme reafirmando as tradições democráticas das forças armadas, o que funcionou como que uma declaração oficial do partido militar de desistência do golpe, em 72 horas o general voava para Brasília para assumir o comando geral (com 700 mil no bolso para auxiliar na mudança para sua nova residência funcional).
Uma derrota colossal, um abalo sísmico na caserna. Pela primeira vez na história do Brasil, militares de alta patente serão presos e condenados pela sua traição, desonrados como homens cuja palavra nada vale, pois conspiraram contra a constituição que juraram defender. Uma vergonha sem precedentes, numerosos são os implicados, e muito mais ainda os que os apoiavam e agora guardam prudente silêncio. Qual será o desfecho do processo? Será que deixarão de fazer continência à bandeira americana e passarão a trabalhar pela nossa soberania? Será que vão entender que o Brasil não existe para servi-los, mas sim o contrário?
Difícil dizer, porém alguns indícios não são auspiciosos como, por exemplo, o recente vídeo institucional da marinha, em que a população em geral é retratada como um bando de irresponsáveis improdutivos, enquanto na marinha se reúne o alecrim dourado da raça brasileira. Ora, por que não fizeram um filminho contando como tiveram que afundar o porta aviões São Paulo, por não terem competência sequer para se desfazer da sucata de seus navios descomissionados? Ou talvez sobre a desídia da Capitania dos Portos do Rio de Janeiro, que permitiu que a Baía da Guanabara se transformasse em um cemitério de navios abandonados, em tal quantidade que chegam a colidir com os pilares da Ponte Rio Niterói.
O que se pode dizer com certeza é que, se de fato acabou nossa fase de república de bananas e os golpes de estado ficaram no passado, muita coisa tem que mudar. O Brasil vai precisar de um poder militar compatível com a crescente projeção do país na geopolítica mundial. A Índia tem um robusto programa espacial e uma missão lunar em andamento, o Irã produz mísseis hipersônicos, a Coréia do Norte domina a tecnologia de mísseis balísticos intercontinentais e cadê o foguete brasileiro? Com a palavra o Instituto de Tecnologia da Aeronáutica. Qual o sentido de manter o serviço militar obrigatório? Para que serve o Tiro de Guerra de Campina Grande, por exemplo, para garantir a caiação dos meios fios da cidade, ou para aumentar capilaridade e influência do partido militar? Por que vivem gritando selva pra lá e pra cá, apegados a uma doutrina militar desenvolvida nos tempos da guerra suja, que nada tem a ver com os desafios geopolíticos da atualidade? Falam tanto em caixas pretas, pois então vamos abrir a da defesa, por que nosso poder militar é pífio? Porque o orçamento militar é insuficiente, ou porque cerca de 80% dele é gasto com pagamento de pessoal?
O Brasil precisa enfrentar com seriedade a discussão sobre a defesa nacional, redefinir nossa doutrina militar estabelecendo objetivos estratégicos adequados à realidade da geopolítica atual, manter uma força armada capaz de cumprir esses objetivos e reconstruir uma indústria bélica capaz de supri-la. Uma doutrina militar para garantir a soberania nacional, compreendendo a nova ordem mundial multipolar, sem alinhamento externo ou submissão. Uma força armada profissional, incorporando as inovações técnicas da guerra moderna e cuja lealdade não deixe qualquer sombra de dúvida. Uma indústria de armamentos de capital nacional (público e privado) capaz de fornecer, sem dependência externa, os recursos necessários para nossa defesa.
E temos que fazer essa discussão logo, o mundo está mudando rapidamente e o Brasil tende a aumentar sua projeção econômica e ganhar relevância política no mundo multipolar. Temos uma diplomacia de excelência; um setor empresarial (público e privado) capacitado para operar no mundo inteiro; um sistema judiciário moderno, capaz de garantir segurança jurídica a qualquer tipo de transação comercial; nosso soft Power é único, com uma cultura vibrante de um povo diverso e acolhedor; no momento temos uma liderança respeitada como Lula, que se destaca no cenário mundial, mas nos falta o tal braço forte. Não podemos entrar no mundo moderno com esses generais politiqueiros, acostumados a viver como pintinhos debaixo das asas da águia americana. Se não conseguirmos gerar uma elite militar digna do nome em nossas forças armadas, o Brasil será um gigante com pés de barro no complexo mundo multipolar que está nascendo.
*Eduardo Papa - Colunista, professor, jornalista e artista plástico (www.mosaicosdeeduardopapa.com)
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